Nada de ilegal
Ao invadir estúdios de rádios comunitárias sem mandatos judiciais e com
aparato digno de operação de busca de traficantes de drogas, a Polícia
Federal acaba cometendo ilegalidades dentro de uma legislação atrasada e mal
interpretada, que deveria ser modificada já para que programadores não sejam
tratados como traficantes. Quem defende isso não é nenhum participante de
rádio comunitária ou universitária cansado de assistir a incursões bruscas
da polícia em emissoras de comunidades, mas, sim, o delegado da Polícia
Federal de São Paulo Armando Coelho Neto, que também é presidente da
Associação dos Policiais Federais de São Paulo.
O polêmico posicionamento já custou ao policial - simpático ao movimento de
democratização dos meios de comunicação e autor do livro “Rádio Comunitária
Não é Crime” - representações contrárias às suas declarações. Suas opiniões
proporcionaram também um discurso na Câmara dos Deputados em defesa das
rádios comunitárias. Para ele, a legislação atual é “uma colcha de retalhos”
e não garante direitos como deveria, pois a liberdade de expressão está
sendo impedida.
Em entrevista à Rets, Coelho Neto critica o governo Lula por ter fechado
proporcionalmente, mais rádios comunitárias do que o governo anterior no
mesmo período, mostra inconsistências nas leis que regem as telecomunicações
e radiodifusão e ainda diz o que um policial e um programador devem portar
no momento de uma ação de fechamento de rádios comunitárias.
Rets - Como um delegado da Polícia Federal se tornou a favor das rádios
comunitárias?
Armando Coelho Neto - A questão não é ficar a favor disso ou daquilo. Temos
fatos, que são a busca pela liberdade de expressão e a radiodifusão
comunitária. Defendo na minha carreira profissional um senso mínimo de
discernimento para meus colegas separarem o joio do trigo. Crime é aquilo
que está escrito em lei e a sociedade condena. Se a lei não está clara, é
necessário mover o pensamento para outro plano.
Vejo a insatisfação de meus colegas, o público, o trabalho feito pelas
rádios comunitárias e o direito de autonomia das universidades atingidos. As
universidades em si são fonte de transformação. Se o conhecimento é
estático, não funciona. Não se pode entrar e proibir atividades. Tudo
precisa ser questionado, lá é a ponta da transformação. Temos que respeitar
a irreverência estudantil nas rádios universitárias. Vejo a importância das
rádios nas universidades e das rádios nas comunidades. Numa época de tanta
tecnologia, não temos que discutir interferência de freqüência – tem é que
ajustar.
O problema das rádios, na verdade, é político e econômico. Tenho 25 anos de
profissão e pergunto se temos que engolir tudo. A freqüência de rádio é
pública, mas o Estado dá a concessão para quem quer e chama a polícia para
fiscalizar. A polícia não pode arbitrar e o tribunal tem que levar em
consideração todo o lado político da questão. É preciso flexibilizar o
tratamento absurdo dado às rádios. Há uma inversão de prioridades. Diante de
um caos jurídico, com tantos problemas por aí, tantos recursos faltando,
gasta-se fortunas para fechar rádios comunitárias.
Defendo essa idéia pois vejo a importância da liberdade de expressão. A lei
que temos não é para as rádios comunitárias, mas para frear o processo de
ganho de audiência delas. As grandes rádios, comerciais, veiculam enlatados,
não sabem chegar no público, enfim, não sabem fazer rádio.
Na legislação, a radiodifusão e a telecomunicação são diferenciados. A lei
de radiodifusão não prevê crime, logo eles enquadram em telecomunicações.
Misturam alho com bugalho. Isso é resultado de tribunais conservadores e
elites poderosas versus estudantes e comunidades.
Rets - O que seus colegas pensam de seu posicionamento?
Armando Coelho Neto - Alguns simpatizam, outros mostram desprezo. Mas uns
procuram consolidar posição contrária, que também é mais cômoda. No Rio de
Janeiro há um colega que de uma só vez quis fechar cem rádios comunitárias.
Os policiais vêm com discursos de que há gente ganhando dinheiro com as
rádios comunitárias. E numa sociedade miserável como a nossa, qual o mal
nisso? O apoio cultural até hoje não foi bem definido.
Os sensatos concordam, outros ficam ofendidos quando descobrem que estão
errados e procuram teses absurdas para se defenderem. A maioria dos
policiais não quer fechar rádios comunitárias. É um serviço chato e
constrangedor. Levam estudantes, moleques brincando de ser DJs, para prestar
depoimento.
Minha história na PF é de discriminação, mas também de muito apoio. Pago um
preço amargo pelas minhas posições. Já houve uma representação contra mim
assinada por 33 delegados, mas em 25 de março deste ano falei oficialmente
em nome da PF na Câmara dos Deputados e saí da “clandestinidade”. É um
avanço a PF indicar alguém a favor das rádios para discutir o assunto. É um
indicador de seriedade, mas a realidade está aí. O governo Lula,
proporcionalmente, fechou mais rádios em três meses do que o governo
Fernando Henrique em oito anos.
Rets - Isso não se deve ao fato da direção da Anatel continuar a mesma?
Armando Coelho Neto - Não sei dizer direito, mas esperávamos um mínimo de
atitude. Ninguém tinha esperanças de mudar tudo de uma hora para outra.
Falta, porém, um gesto político de deixar a rádio comunitária fora da
prioridade de ação da PF. Sinceramente, ela tem mais o que fazer.
Rets - Como deveria ser a legislação de radiodifusão comunitária?
Armando Coelho Neto - Deveriam separar telecomunicação e radiodifusão e
fazer um texto mais claro. A legislação hoje é uma colcha de retalhos. As
rádios comunitárias reportam, entre outras normas, a uma lei de 1962 (Lei
4.117/62, que estabelece o Código Brasileiro de Telecomunicações). A lei
deve ser mais clara, objetiva e menos burocrática. Hoje há exigências
impossíveis de cumprir e concessões duvidosas.
A legislação deveria garantir direitos e não colocar obstáculos. A
Constituição fala que nenhuma lei pode criar embaraço para o direito de
liberdade de expressão. O que existe hoje é uma negativa do direito. Vivemos
num país que cria direitos e põe obstáculos ao seu exercício.
A questão é de mera regulamentação. Em primeiro lugar, devemos sepultar a
lei de 1962. Segundo, deve ficar claro o que é telecomunicação e o que é
radiodifusão. Terceiro, definir o que é rádio comercial e o que é rádio
pequena (no sentido de baixa potência). É simples, basta querer. Mas o
desejo esbarra em interesses políticos e econômicos.
O Decreto Presidencial 2.615/98, que regulamenta as penas para infração da
lei de radiodifusão, não prevê apreensão de equipamentos no caso de
intervenções policiais, mas isso acontece. Qual o motivo?
Essa é apenas uma ilegalidade cometida em ações policiais de fechamento de
rádios. Um decreto é sempre inferior a uma lei, mas esse fala mais que a lei
de radiodifusão comunitária. Isso não pode acontecer. Outro problema é que
ninguém pode ser expropriado de seus bens sem ser submetido a processo
legal. Feito o processo e decidida a apreensão, tudo bem, mas o quadro de
ilegalidade é constante. É um sinal de envelhecimento da legislação.
Rets - Uma das propostas feitas para tentar diminuir os problemas com a
Polícia é municipalizar a concessão de rádios comunitárias. Qual a sua
opinião sobre isso?
Armando Coelho Neto - Acho legal, muito bom. Mas vai esbarrar na legislação
federal. Se o município criar leis, não caberá ao policial julgar se as
rádios são constitucionais ou não. Porém, não podemos confundir o
cumprimento da Constituição com interpretação equivocada da lei. Se há lei
municipal, as rádios terão amparo legal, mas surgirá um conflito de leis. Um
ponto positivo da municipalização é que a pecha de criminoso cairá.
O tratamento dado a quem faz rádio comunitária é igual ao de traficantes.
Não na pena, mas na força física das incursões policiais. A PF vai de
metralhadora, helicóptero.
Acho que a lei federal deveria prever a concessão de baixa potência como
responsabilidade municipal. A Câmara dos Deputados se reúne para saber de
Quixaromobim pode ter rádio comunitária ou não. É um absurdo, não tem
coerência. Um juiz, procurador, delegado que se recusa a autorizar o
funcionamento das rádios está fora de seu tempo.
Rets - Você falou que o tratamento dado a radialistas comunitários é
parecido com o recebido por traficantes. Uma das alegações para o fechamento
de rádios é a sua associação com o tráfico de drogas. Isso é verdade? Qual a
sua opinião?
Armando Coelho Neto - É falácia, uma campanha terrorista. Viram que não deu
certo alegar interferência em aviões – aliás, há anos falam nisso mas até
agora ninguém disse onde caiu a aeronave que foi prejudicada por
transmissões radiofônicas.
A bola da vez é o tráfico. Nem deveríamos tocar no assunto para não
alimentar essa mentira. Só quando a denúncia for objetiva deveríamos
veicular esse tipo de notícia.
Rets - O que nas rádios comunitárias pode ser considerado ilegal?
Armando Coelho Neto - Não vejo ilegalidade alguma. A questão é do ponto de
vista administrativo. Vejo ilegalidade por parte do poder público, que viola
residências, expropria bens adquiridos honestamente e estipula fianças acima
das posses. O criminoso é o Estado. Um fator que não é ofensivo e não atinge
a sociedade não é ilegal.
Há vários absurdos. Já ouvi casos de policial que entra com vários papéis
para o programador assinar e no meio há declaração de autorização de entrada
da polícia no recinto. Isso é imoral, uma coação.
Rets - O que um policial deve apresentar no momento da ação? O que ele pode
fazer?
Armando Coelho Neto - É necessário apresentar a documentação completa. A PF
parte do princípio criminoso – se o crime está lá, não precisa de
autorização para prender. Mas há nisso uma situação duvidosa. Portanto, é
importante o policial estar munido de ordem judicial, pois ninguém pode
entrar em um recinto sem ser convidado. Isso é bom até para dar lisura à
ação.
Rets - E o que os programadores podem fazer nessa situação?
Armando Coelho Neto - Devem usar a força do argumento. O programador não
pode deixar a polícia entrar sem mandato, mas caso isso aconteça, ela deve
assumir a responsabilidade pelo arrombamento. No momento em que você quer
dialogar e os policiais são truculentos, não há contra-argumento. Se você
não pode impedir e eles são mais fortes, infelizmente manda quem pode e
obedece quem tem juízo.
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